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Como comemos o que comemos:
Um retrato do consumo de refeições em Portugal 

A alimentação fornece energia e nutrientes, mas também experiências hedónicas e simbólicas. Os hábitos alimentares têm funções sociais, culturais e económicas essenciais para indivíduos e comunidades.

Em Portugal, a maioria dos estudos sobre alimentação tem-se focado no alimento consumido e em quem o consome, ignorando fatores como contexto físico, social, económico e histórico. Isso deixa de fora decisões e ações que influenciam e enquadram a ingestão dos alimentos. Ou seja, tem-se analisado mais os fins do que os meios.

A verdade é que, segundo os dados de 2020 do Our World in Data, uma publicação científica on-line da Universidade de Oxford, no Reino Unido, 46,5% do tempo de lazer em Portugal é passado em refeições. Este dado é, por si só, revelador da importância que as refeições assumem na vida dos portugueses e da necessidade de entendermos como, onde e o que comem.

No estudo “O que Comemos; como comemos: o consumo de refeições em Portugal no século XXI”, levado a cabo por uma equipa pluridisciplinar da Universidade Católica Portuguesa (CATÓLICA-LISBON School of Business & Economics) e da Universidade do Porto (Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação e Instituto de Saúde Pública) para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, foi analisada a refeição, que constitui o contexto mais comum e o fim mais imediato dos comportamentos de consumo alimentar, tendo ficado claro que é necessária uma mudança na forma como entendemos a nossa alimentação e a nossa dieta.

“Os humanos não consomem alimentos isoladamente de forma errática, como os restantes animais, mas sim enquadrados em refeições a horas mais ou menos certas, que lhes dão contexto e significado, que criam rotinas e estilos de vida. Estes fazeres, que incluem o planeamento e a preparação destas refeições, são as práticas alimentares, daí que o tipo de refeição – principal/intercalar -, o horário de realização, o local de consumo e o modo de preparação - local e quem prepara – determinem, em larga medida, a nossa alimentação e a qualidade da nossa dieta. Neste estudo demonstrámos que isto tem um claro impacto na saúde pública das populações e, como tal, tem de começar a ser tido em conta na análise da evolução de fenómenos como a obesidade e as doenças crónicas e no delineamento de políticas que os pretendem combater”, afirma a Professora Ana Isabel Costa, coordenadora do estudo.

​"A refeição é o contexto temporal, físico, funcional, social, cultural e simbólico que enquadra a maioria das etapas e facetas do consumo alimentar humano: desde o planeamento de onde, quando, o quê e com quem vamos comer — passando pelos processos de escolha, aquisição, armazenamento e confeção dos alimentos a consumir, e de preparação e apresentação dos pratos aos comensais —, até à ingestão dos alimentos propriamente dita, ao descarte ou conservação e reutilização de sobras e, finalmente, à limpeza e organização de utensílios e espaços de armazenamento, confeção e consumo."

Domestic food practices

Trivial e ao mesmo tempo complexa, a refeição é a instituição cultural que regula a nossa alimentação e as decisões e comportamentos que lhe estão associadas. Nela se refletem escolhas e ações que, em muito, a condicionam e determinam, e que acabam por impactar o nosso consumo alimentar. Nesta medida, a refeição constitui muitas vezes o veículo ou o resultado do pensamento e da ação dos diversos agentes económicos - famílias, empresas, mercados e governos -, sem que esses agentes se deem conta disso mesmo. Por tudo isto importa estudá-la. A refeição é ainda o produto de outra instituição cultural profundamente humana, a culinária, e dos atores nela envolvidos, sobretudo as famílias.

Apesar da sua perenidade, relevância e ubiquidade, o ato de cozinhar e a natureza de quem em casa o executa permanecem fenómenos essencialmente privados e imperscrutáveis, tal como as refeições a que dão origem. Talvez por isso sejam raramente estudados. Esta conceção da refeição e das práticas que lhe estão associadas espelha uma abordagem verdadeiramente ecológica do comportamento alimentar, onde as escolhas alimentares e os consequentes padrões de consumo são determinados não só por caraterísticas biológicas e psicológicas, mas também pelos fatores físicos, económicos e socioculturais, em que indivíduos, comunidades e populações se inserem. Este estudo mostra que boa parte da nossa alimentação deriva de atividades de culinária doméstica, e de quem exerce essas atividades diariamente; a outra parte resulta das alternativas que escolhemos quando não temos capacidade/ oportunidade ou motivação para consumirmos refeições «produzidas» em casa, incluindo por nós próprios. Ficou demonstrado também que as práticas alimentares são um reflexo das complexas associações existentes entre género, atividade laboral, rendimento e classe social. 

MULHERES NA LINHA DA FRENTE DAS TAREFAS DOMÉSTICAS

Um aspeto que merece especial atenção no estudo é a disparidade entre géneros na preparação das refeições. Tradicionalmente, a responsabilidade pela preparação dos alimentos tem recaído muito mais sobre as mulheres, o que não só reflete padrões culturais e sociais enraizados, como também coloca desafios adicionais na gestão do tempo e na conciliação entre as múltiplas tarefas do quotidiano. Este estudo, assim como outros estudos internacionais e nacionais, mostra que as mulheres, em média, dedicam significativamente mais tempo à cozinha do que os homens, mesmo quando ambos estão inseridos no mercado de trabalho. Esta divisão desigual das responsabilidades domésticas não só influencia a dinâmica familiar, mas também impõe um esforço adicional às mulheres, que muitas vezes é subvalorizado. Na abordagem do comportamento alimentar, torna-se imprescindível considerar a dimensão de género, reconhecendo que políticas de promoção de uma alimentação saudável devem, simultaneamente, fomentar a igualdade nas tarefas domésticas e valorizar o tempo dedicado à preparação das refeições. 

O TRABALHO CONDICIONA A FORMA COMO COMEMOS

Na vida quotidiana, a refeição é bastante condicionada pelo contexto profissional. O estudo analisa como o trabalho molda os hábitos alimentares dos portugueses, considerando a frequência da preparação e consumo de refeições em casa durante a semana e ao fim de semana, bem como os fatores que motivam a confeção doméstica de refeições. Foram identificados diferentes grupos populacionais, que apresentam padrões distintos de consumo alimentar em função do contexto profissional e socioeconómico: gregárias emancipadas, caseiras remediadas, profissionais diligentes e universitários desengajados.

Os resultados mostram que, apesar da maioria dos Portugueses em idade ativa consumir refeições em casa, existem grupos em que essa prática é menos comum, como as gregárias emancipadas e os universitários desengajados. Estes grupos destacam-se pelo reduzido consumo de refeições domésticas durante a semana, tendência que se mantém, embora com algumas variações, ao fim de semana. Em contrapartida, as caseiras remediadas e as profissionais diligentes demonstram um envolvimento significativo na confeção e consumo de refeições em casa, sendo o jantar a refeição mais frequentemente preparada e consumida neste contexto.

O estudo revela ainda que a prevalência do consumo de refeições em casa está associada a fatores como o tempo passado no lar, a motivação para cozinhar e a perceção de responsabilidade em relação à alimentação do agregado. De forma geral, demonstra-se que os hábitos alimentares dos portugueses são fortemente influenciados pela atividade profissional, pelo tempo disponível e pelos valores associados à confeção das refeições. Enquanto alguns grupos internalizam a prática do consumo doméstico de refeições como uma obrigação ou uma necessidade, outros veem a alimentação fora de casa como uma alternativa mais conveniente, refletindo diferenças económicas, sociais e culturais no modo como se organiza a vida alimentar.

O RENDIMENTO INFLUENCIA O NOSSO PADRÃO ALIMENTAR

A condição socioeconómica das famílias é fator determinante na forma como estas organizam as suas refeições. A disponibilidade de rendimentos tem um impacto direto no acesso a alimentos de qualidade, na capacidade de planear e preparar refeições equilibradas e na possibilidade de se investir em hábitos alimentares que promovam a saúde. Em contextos de menor poder de compra, pode haver uma tendência a optar por alimentos mais acessíveis e, frequentemente, menos nutritivos, contribuindo para um ciclo de vulnerabilidade nutricional e de saúde. Por outro lado, famílias com rendimentos mais elevados tendem a dispor de recursos para investir em produtos frescos e em preparações caseiras, o que pode favorecer um padrão alimentar mais saudável. Esta realidade socioeconómica torna imperativo que os estudos sobre comportamento alimentar explorem as disparidades existentes, fornecendo dados que possam sustentar políticas públicas orientadas para reduzir desigualdades e promover a segurança alimentar em todos os estratos da população. De acordo com a coordenadora do estudo:

“Uma alimentação saudável exige tempo de planeamento e confeção, e exige rendimento disponível – ambos dependem do trabalho. É importante perceber como se pode equilibrar melhor a partilha do trabalho doméstico não remunerado por entre os membros do agregado, que tipo de incentivos se precisa de implementar."

PORTUGUESES COMEM MAIS FORA DE CASA DO QUE OUTROS POVOS EUROPEUS

Em Portugal, o consumo alimentar fora de casa tem crescido significativamente desde 2008, exceto durante os períodos de crise económica (2010-2013) e a pandemia de 2020, quando essa despesa caiu abruptamente. Em contrapartida, o consumo alimentar doméstico aumentou nesses momentos. 
Segundo dados do INE, entre 2015-2016, os portugueses gastaram 8,1% da sua Despesa Total Anual Média em alimentação fora de casa, comparado com 5,0% na Bélgica. Já no total da despesa alimentar, esse valor foi de 35,1% em Portugal contra 30,7% no Reino Unido. Antes da pandemia (2018-2019), os serviços de restauração representavam mais de 10% do consumo privado em Portugal, enquanto a média europeia era pouco superior a 7%.
A análise mostra que os gastos com alimentação em casa aumentam com a idade, especialmente após os 64 anos. Por outro lado, a despesa em restaurantes tem diminuído em agregados familiares representados por mulheres, tendência também vista nos EUA.

FEITO FORA, COMIDO EM CASA 

Os hábitos de consumo alimentar em Portugal refletem uma crescente preferência por refeições de confeção não doméstica, com dois terços das refeições consumidas a resultarem da produção ou preparação fora de casa. 
Embora o consumo de refeições preparadas fora do ambiente doméstico cresça de forma progressiva à medida que o rendimento do agregado familiar sobe, a preferência por este tipo de refeições é comum a todos os escalões de rendimento.
O estudo revela que o pequeno-almoço e o lanche são as refeições que os portugueses mais compram ou consomem fora de casa, enquanto o jantar é a mais consumido em contexto doméstico. Ao almoço, mais de metade das nossas refeições são produzidas fora de casa, seja na indústria alimentar, na restauração coletiva ou em restaurantes e similares. 
O estudo mostra ainda que os agregados portugueses com maior rendimento tendem a recorrer mais à restauração comercial, enquanto os de menor rendimento recorrem mais ao consumo de refeições caseiras, mas mais frequentemente preparadas por familiares e amigos do que pelos próprios. Isto ilustra o impacto do nível de rendimento nas escolhas alimentares das famílias portuguesas.
Em suma, estes resultados demonstram que o consumo alimentar em Portugal é fortemente condicionado por fatores económicos e sociais, refletindo padrões distintos de alimentação nos diferentes grupos da população. 

COMO COMEMOS CONTRIBUI PARA A SAÚDE E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 

Uma parte importante do estudo é dedicada à relação entre os hábitos de confeção e consumo de refeições e a saúde dos portugueses. A análise dos dados revela que fatores como o local de consumo, o tipo de refeição e o tempo dedicado à sua preparação influenciam significativamente a qualidade da dieta e o estado nutricional da população. Além disso, aspetos como o rendimento, o género e a composição familiar desempenham um papel importante na forma como os portugueses se alimentam.
Os resultados demonstram que um elevado consumo de refeições preparadas fora de casa ou por terceiros pode afastar a dieta dos adultos portugueses do padrão alimentar da dieta mediterrânica, padrão esse que se mantém mais próximo quando a alimentação é feita em casa. Contudo, os impactos do local e da origem das refeições variam consoante a idade e o nível de atividade física. 
Comparando Portugal com outros países como Bélgica, Reino Unido e Estados Unidos, observa-se que cozinhar em casa está frequentemente associado a uma alimentação mais equilibrada. No entanto, o tempo dedicado à confeção de refeições pode ter implicações no Índice de Massa Corporal (IMC), sendo que, em alguns casos, cozinhar mais tempo está ligado a uma maior prevalência de obesidade.
Outra descoberta importante do estudo é o impacto do rendimento na dieta através das preferências por locais de preparação e consumo das refeições. Por exemplo, o segmento dos portugueses adultos com maior preferência pelo consumo de refeições preparadas fora de casa apresenta menor aderência ao padrão alimenta da dieta mediterrânica, mas também engloba menos frequentemente indivíduos obesos ou com baixo rendimento. Já o segmento daqueles que consomem sobretudo refeições confecionadas pelos próprios em casa contém mais pessoas com maior índice de massa corporal e baixos rendimentos.
A investigação destaca também os desafios associados ao estudo da alimentação e saúde em Portugal. A irregularidade na recolha de dados sobre consumo alimentar e o acesso limitado a inquéritos sobre hábitos de refeição dificultam uma análise mais aprofundada e a formulação de políticas de saúde pública eficazes. A comparação com países que dispõem de dados mais acessíveis reforça a necessidade de uma abordagem mais estruturada e contínua na monitorização dos hábitos alimentares da população portuguesa.
A análise do comportamento alimentar é igualmente um instrumento indispensável para avaliar se as práticas dos cidadãos estão em consonância com os compromissos internacionais e para identificar as áreas onde se pode promover uma intervenção mais eficaz, orientada para o bem-estar e a sustentabilidade, como definidos pela Organização das Nações Unidas, no quadro global dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), particularmente o ODS 2 – Fome Zero e Agricultura Sustentável – e o ODS 3 – Saúde e Bem-Estar. 
As Nações Unidas, em colaboração com organismos como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), têm enfatizado a necessidade de uma abordagem integrada à alimentação saudável. O estudo aqui apresentado revela como as caraterísticas sociais, familiares, laborais e económicas impactam as refeições que fazemos, tanto no conteúdo, quanto na forma, permitindo uma comparação entre as metas internacionais e a realidade nacional. 

CONHECER PARA AVANÇAR

Este estudo sobre os hábitos alimentares dos portugueses revela que, apesar da maioria das refeições serem consumidas em casa, a confeção e consumo alimentar fora do lar têm um peso significativo na dieta, sobretudo ao pequeno-almoço e lanche. O local das refeições influencia a qualidade da dieta, sendo as refeições em cantinas escolares ou restaurantes de locais de trabalho mais benéficas do que as em restauração comercial.

Fatores socioeconómicos, como rendimento e escolaridade, determinam os padrões de consumo: famílias de menor rendimento e residentes em zonas rurais consomem mais refeições em casa, enquanto indivíduos com maior rendimento e escolaridade recorrem mais à alimentação fora do lar. A relação entre despesa alimentar e consumo externo varia com a economia, sendo menor em períodos de crise.

A confeção doméstica de refeições reflete desigualdades de género e status social. Mulheres, especialmente as sem emprego remunerado, assumem a maior parte dessa responsabilidade. Já os jovens de maior rendimento dedicam menos tempo à cozinha, valorizando a conveniência e o convívio social.

Curiosamente, a confeção caseira não está diretamente associada a uma melhor gestão do peso, sendo a obesidade mais comum entre quem cozinha regularmente. Fatores como rendimento, literacia alimentar e de saúde, tempo disponível e acesso a escolhas saudáveis influenciam essa relação. Para muitas famílias portuguesas, o equilíbrio entre compromissos profissionais, educativos e outras atividades de lazer torna-se um desafio constante. A investigação sobre o seu consumo alimentar deve, assim, considerar não só as preferências e os hábitos individuais, mas também as estruturas temporais e organizacionais que influenciam as decisões diárias. Essa análise permite identificar barreiras e potenciais intervenções que possam facilitar a adoção de práticas alimentares mais saudáveis, mesmo em contextos de escassez de tempo. 

O estudo reforça ainda a necessidade de aprofundar a análise dos comportamentos alimentares, distinguindo padrões entre dias úteis e fins de semana, e considerando as diferenças de género e estatuto socioeconómico na relação com a alimentação e a saúde.

Os estudos que investigam o comportamento alimentar constituem um instrumento fundamental para a elaboração de políticas públicas. Os dados obtidos sobre “como comemos e o que comemos” permitem a governos e decisores políticos identificar tendências, desafios e sobretudo oportunidades para melhorar várias áreas da vida dos portugueses. Contribuem para a formulação de estratégias que promovam a literacia alimentar, melhorem o acesso a alimentos de qualidade, reforcem as infraestruturas que suportam a produção e distribuição de alimentos saudáveis e promovam a flexibilização de horários de trabalho que permitam uma maior conciliação entre vida profissional e pessoal, entre outros. Com base neles pode promover-se não apenas a saúde, mas também a justiça social e o desenvolvimento sustentável e reforçar o compromisso do Estado com a sustentabilidade, a equidade e a saúde dos seus cidadãos, alinhando as ações nacionais com os desafios globais.

Importa ainda dizer que os estudos que investigam o comportamento alimentar constituem um instrumento fundamental para a elaboração de políticas públicas. Nomeadamente, a realização regular de inquéritos sobre uso do tempo, despesa alimentar e consumos alimentares é essencial. Países como Bélgica, Reino Unido e EUA, onde os resultados destes estudos são acessíveis ao público, lideram a investigação sobre as refeições e os seus efeitos na vida das pessoas, na economia do país e na saúde das populações. Em Portugal, a irregularidade da realização de inquéritos de âmbito nacional e a falta de acesso público aos dados resultantes limitam a investigação neste domínio, sendo urgente mudar essa situação para melhor apoiar a ciência e as políticas públicas.

"A escassez de dados e estudos sobre o consumo alimentar em Portugal é de facto espantosa. Se não tivermos conhecimento dos factos sobre a nossa alimentação, e não os aceitarmos, não podemos começar a compreender a realidade da nossa dieta e a ajustar as decisões individuais e as políticas a ela."

Ana Isabel Costa, coordenadora do estudo

NOTA METODOLÓGICA

O estudo Como comemos o que comemos: Um retrato do consumo de refeições em Portugal partiu de uma abordagem socio-ecológica do comportamento alimentar para a análise de múltiplos conjuntos de dados, primários e secundários, relativos aos comportamentos de planeamento, confeção, consumo e pós-consumo de refeições dos portugueses e à sua evolução entre 2000 e 2020. Os resultados foram comparados com os obtidos noutros países ocidentais em igual período – com destaque para a Bélgica, Reino Unido e Estados Unidos – de forma a serem devidamente enquadrados no contexto internacional.

Dados primários

Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física

https://www.ian-af.up.pt/

MAKE DO: Inquérito às práticas alimentares da população em idade ativa

https://www.science4covid19.pt/en/

Dados secundários

Inquérito Nacional aos Usos do Tempo de Homens e de Mulheres

https://www.cesis.org/pt/area-actividade/

Usos do tempo diário em vários países na atualidade

https://ourworldindata.org/time-use-living-conditions

Despesa de Consumo Final das Famílias em Portugal

https://www.ine.pt/xportal/xmain

Despesa de Consumo Final das Famílias na União Europeia

https://ec.europa.eu/eurostat/web/national-accounts/database

Inquérito às Despesas das Famílias em Portugal

https://www.ine.pt/xportal/xmain?

Inquéritos à Despesa das Famílias na União Europeia

https://ec.europa.eu/eurostat/web/household-budget-surveys

Inquérito Alimentar e ao Custo de Vida no Reino Unido

https://www.ons.gov.uk/peoplepopulationandcommunity

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Trivial e ao mesmo tempo complexa, a refeição é a instituição cultural que regula toda a nossa alimentação assim como as decisões e comportamentos que lhe estão associados. Mas quais são os hábitos de preparação e consumo de refeições dos Portugueses na atualidade? Como evoluíram nas últimas décadas? Como se comparam a outros países? Como impactam a sua dieta, saúde, rendimento ou segurança alimentar? Com base no estudo que levámos a cabo para a Fundação Francisco Manuel dos Santos entre 2020 e 2023, intitulado Como comemos o que comemos: um retrato do consumo de refeições em Portugal, damos resposta a estas e outras questões sobre os hábitos alimentares dos Portugueses na atualidade e a sua evolução ao longo das últimas décadas.

Statistical data gender

MULHERES DOMINAM NA PREPARAÇÃO DAS REFEIÇÕES

De acordo com os dados do último Inquérito Nacional ao Uso do Tempo, cerca de três quartos das mulheres portugueses dedicam uma ou mais horas diárias à confeção doméstica de refeições, contra menos de um quarto dos homens, despendendo elas, em média, mais 18 minutos por dia nesta atividade não remunerada do que eles. Acresce que quase dois terços das mulheres não partilham ou delegam a confeção doméstica de refeições noutros membros do agregado ou em familiares. Já as que dividem esta tarefa com a mãe ou a(s) filha(s) são quase tantas quantas as que o fazem com o cônjuge ou parceiro. Se se adicionar à confeção de refeições as restantes tarefas de cuidado do agregado, chega-se à conclusão que as mulheres exercem mais 12.6 h de trabalho não remunerado por semana do que os homens, em Portugal. Esta diferença é ainda mais acentuada entre a população ativa portuguesa, fazendo com que as mulheres que trabalham disponham de menos tempo para o cuidado pessoal e o lazer que os homens.
O estudo
Como comemos o que comemos: Um retrato do consumo de refeições em Portugal procurou aprofundar o conhecimento sobre as diferenças de género e o seu impacto nas práticas alimentares domésticas através da realização de um inquérito a uma amostra estratificada da população portuguesa em idade ativa. A análise dos resultados permitiu segmentar esta população em quatro grupos com padrões de preparação e consumo de refeições bem distintos: as gregárias emancipadas, as caseiras remediadas, as profissionais diligentes e os universitários desengajados.
Entre a população em idade ativa com menor envolvimento na confeção doméstica de refeições estão as gregárias emancipadas e os universitários desengajados, que têm em comum o facto de serem mais jovens, provirem de agregados com maiores rendimentos e atribuírem menor valor ao consumo alimentar em casa que os membros dos outros dois grupos. Por outro lado, as caseiras remediadas e as profissionais diligentes representam faixas etárias superiores e têm maior envolvimento na confeção doméstica de refeições. Ainda assim, as primeiras têm mais vontade e gosto em confecionar o almoço e o jantar em casa diariamente do que as segundas, em parte por, mais amiúde, não exercerem uma atividade profissional e pertencerem a agregados com menor rendimento. A necessidade de conjugação de uma carreira com o cuidado da família por parte das profissionais diligentes contribui para que confecionem as refeições domésticas sobretudo por obrigação, especialmente durante a semana.​​​​

"De acordo com o estudo Como comemos o que comemos, o gosto por cozinhar, as competências culinárias e a autoconfiança na aptidão e autonomia para cozinhar são os fatores psicológicos que mais promovem a confeção doméstica de refeições entre a população portuguesa em idade ativa. A estes soma-se o sentido de dever e de responsabilidade para com a saúde e o bem-estar do agregado.  Em contrapartida, a valorização das oportunidades de socialização e convívio oferecidas pelo consumo alimentar fora de casa, assim como a fruição de momentos de lazer, são os motivos que inibem uma prática mais regular da confeção de refeições em casa."

Ana Isabel Costa, coordenadora do estudo

Este estudo permitiu, pela primeira vez, identificar os principais fatores demográficos e socioeconómicos que determinam o grau de especialização na confeção das refeições do agregado e o tempo investido nesta atividade pelas portuguesas e portugueses. Os seus resultados revelaram ainda as motivações associadas ao maior ou menor envolvimento nas práticas alimentares domésticas. Neste âmbito, é importante destacar a prevalência de fortes normas sociais que depositam nas mulheres a responsabilidade pela alimentação e bem-estar da família e que, em grande medida, continuam a isentar os homens desse encargo.

Statistical data labour
Statistical data labour

O TRABALHO INFLUENCIA AS NOSSAS REFEIÇÕES

O estudo Como comemos o que comemos: Um retrato do consumo de refeições em Portugal procurou aprofundar o conhecimento sobre o impacto do trabalho nas práticas alimentares domésticas através da realização de um inquérito a uma amostra estratificada da população portuguesa em idade ativa. A análise dos resultados permitiu segmentar esta população em quatro grupos com padrões de preparação e consumo de refeições bem distintos: as gregárias emancipadas, os universitários desengajados, as caseiras remediadas e as profissionais diligentes.

As gregárias emancipadas e os universitários desengajados têm em comum o facto de serem mais jovens e provirem de agregados com maiores rendimentos. Já o que distingue as caseiras remediadas das profissionais diligentes é exercerem menos amiúde uma atividade profissional e pertencerem a agregados com menor rendimento. Tais diferenças resultam em hábitos de consumo de refeições bem distintos. Por exemplo, enquanto as caseiras remediadas e as profissionais diligentes consumirão pelo menos uma refeição em casa diariamente, esse já não será o caso dos outros dois segmentos, principalmente se falarmos de refeições feitas ao fim-de-semana.

O jantar é a refeição mais frequentemente consumida em casa pelos portugueses em idade ativa durante a semana, com destaque para as caseiras remediadas e profissionais diligentes. Já o almoço e o lanche em casa são consumos muito mais prevalentes nas caseiras remediadas e nas gregárias emancipadas do que nos outros dois grupos. As profissionais diligentes, em particular, raramente consomem estas refeições em casa, sendo também aquelas que, em conjunto com os universitários desengajados, menos frequentemente consomem o pequeno-almoço em casa durante a semana.

Importa ainda notar que há diferenças significativas na prevalência do consumo do jantar em casa, durante a semana - 90,0% das gregárias emancipadas e 88,6% dos universitários desengajados contra 95,9% das caseiras remediadas e 98,1% das profissionais diligentes - e ao fim de semana - 73,2% das gregárias emancipadas e 72,7% dos universitários desengajados contra 86,8% das profissionais diligentes e 88,8% das caseiras remediadas.

Em linha com um maior envolvimento na confeção doméstica de refeições e um maior número de horas passadas em casa, é nas caseiras remediadas que se observa um consumo doméstico do almoço e do jantar mais frequente, tanto durante a semana como ao fim de semana. É ainda neste padrão que existem as maiores proporções de desempregados(as) ou inativos(as), e de membros de agregados com menor rendimento, conjugados com uma maior motivação intrínseca e uma maior autoeficácia em relação à confeção doméstica de refeições.

Na relação com a elevada ocorrência do exercício de uma atividade profissional e a resultante redução do tempo passado em casa durante o dia, é entre as profissionais diligentes que se observam as mais baixas proporções do consumo doméstico do pequeno-almoço, almoço e lanche durante a semana. É, porém, neste padrão que existe a mais alta proporção do consumo doméstico do jantar nesta ocasião. Este comportamento reflete um maior envolvimento com a confeção desta refeição, que resulta essencialmente de um forte sentimento de dever e de responsabilidade por assegurar o jantar do agregado diariamente. Tal motivação regula ainda, em certa medida, a confeção e o consumo doméstico de refeições ao fim de semana, cujas prevalências são também mais altas nas profissionais diligentes do que nos outros padrões, exceto nas caseiras remediadas. Isto coaduna-se com o facto de estarem mais tempo em casa nesta ocasião.

A maioria das pessoas em idade ativa mantém o hábito de cozinhar e consumir refeições em casa, influenciada por fatores económicos e sentimentos de satisfação pessoal. Em particular, as caseiras remediadas e as profissionais diligentes exibem um elevado grau de internalização das práticas de confeção e consumo doméstico de refeições, ainda que com motivações diferentes. Os fatores socioeconómicos já descritos ajudam a explicar o seu baixo consumo de refeições fora de casa. Além disso, estes grupos mostram pouca tendência para partilhar, delegar ou externalizar as tarefas domésticas relacionadas com a alimentação. Tanto para as caseiras remediadas como para as profissionais diligentes, o contacto social e o prazer associados a ocasionalmente comer fora de casa poderão ser, então, sentidos como uma verdadeira recompensa por eventuais desvantagens resultantes da confeção diária de refeições. Esses comportamentos refletem um sentido de dever em manter a prática da confeção doméstica, especialmente o jantar, que é preparado com regularidade.

As gregárias emancipadas apresentam comportamentos como passar mais horas em casa e maior participação na preparação das refeições durante a semana, em particular no pequeno-almoço e no lanche. Contudo, não se envolvem tanto no jantar ou na preparação de refeições nos fins de semana, como ocorre com as caseiras remediadas e as profissionais diligentes. As diferenças entre esses grupos estão ligadas a fatores motivacionais, como menor prazer e satisfação com a culinária em casa, e também a características demográficas, como idade e nível de rendimento. 

Por fim, os universitários desengajados exibem um padrão comportamental semelhante ao das profissionais diligentes, passando menos tempo em casa e envolvendo-se menos na preparação de refeições diárias. Partilham com as gregárias emancipadas uma baixa autoeficácia e falta de motivação em relação à culinária, o que resulta em preferência por comer fora e na delegação de tarefas de preparação das refeições.

Em suma, cerca de um quarto da população jovem e adulta dedica pouco ou nenhum tempo à atividade culinária. Esse grupo é composto, na maioria, por homens com menos de 30 anos, estudantes ou trabalhadores, pertencentes a agregados com vários adultos ativos e rendimento elevado.

Statistical data income

NÍVEIS DE RENDIMENTO DITAM HÁBITOS DE CONSUMO ALIMENTAR

O estudo Como comemos o que comemos: Um retrato do consumo de refeições em Portugal procurou aprofundar o conhecimento sobre o consumo alimentar, dentro e fora de casa dos Portugueses, através da análise dos dados do Inquérito Nacional à Despesa das Famílias, realizado pelo Instituto Nacional de Estatística a cada cinco anos.

Os resultados mostram que o principal fator associado à opção das famílias portuguesas pelo consumo alimentar em casa, em detrimento da realização de refeições fora de casa, nas últimas duas décadas, é o seu nível de rendimento. É bastante notória a relação inversa existente entre a proporção da despesa média alocada ao consumo alimentar doméstico e o escalão de rendimento das famílias, em todos os períodos analisados. A título de exemplo, em 2015–2016 o consumo alimentar em casa representou 21,1% da despesa dos agregados classificados no 1º Escalão de rendimento e em 2005–2006 representou 24,7%. Nos agregados do 6º escalão foi de apenas 11,7% em 2015-2016 e 12,0% em 2005– 2006.

Já a relação direta existente entre nível de rendimento e consumo de refeições fora de casa é menos acentuada, embora igualmente evidente. Neste âmbito, as diferenças entre escalões de rendimento do agregado são mais visíveis em 2015–2016, anos em que o consumo alimentar fora de casa representou somente 5,2% da despesa dos agregados do 1º escalão, mas alcançou quase o dobro (9,4%) nos classificados no 6º Escalão.

De acordo com os dados do último Inquérito Alimentar Nacional, também analisados no âmbito do presente estudo, a prevalência do consumo alimentar doméstico nos adultos portugueses é significativamente maior naqueles que são membros de agregados familiares com rendimento líquido inferior a 970 euros mensais ou em situação de insegurança alimentar (+9%). Verifica-se, no entanto, uma menor confeção de refeições pelos próprios (-10%) nos agregados com rendimentos superiores a €485, que é compensada pelo aumento do consumo de refeições preparadas por familiares ou amigos. Em contrapartida, o consumo de refeições em restaurantes ou através de empresas de catering é mais comum em agregados com rendimento líquido superior a 1 455 euros mensais e em situação de segurança alimentar. Já os agregados em situação de insegurança alimentar gastam menos neste tipo de refeições. Estes resultados estão em linha com as análises da despesa alimentar das famílias portuguesas.

De destacar são as diferenças existentes entre Portugal e o Reino Unido no que toca à distribuição da proporção da despesa das famílias com refeições consumidas fora de casa:  as famílias portuguesas classificadas no 4º e 5º escalões gastaram proporcionalmente muito mais em consumo alimentar fora de casa entre 2005–2006 e 2015–2016 do que as suas congéneres no Reino Unido, enquanto as do 1º e 2º escalão gastaram proporcionalmente menos.

A análise das escolhas de consumo alimentar das famílias portuguesas observadas quinquenalmente, entre 2005 e 2015 revela também que a proporção da despesa com o consumo alimentar doméstico é superior e crescente ao longo do tempo, em agregados residentes em zonas rurais — nomeadamente no Alentejo e na Região Autónoma dos Açores — relativamente aos das zonas urbanas, assim como em agregados sem indivíduos ativos, ou com três ou mais indivíduos ativos e ainda naqueles cujas principais fontes de rendimento são as pensões ou outros benefícios sociais em vez da remuneração do trabalho. Por outro lado, o peso da despesa com refeições fora de casa é superior e crescente ao longo do tempo em agregados residentes em zonas urbanas — sobretudo na Área Metropolitana de Lisboa e no Algarve — relativamente aos agregados das zonas rurais, ou aqueles em que a primeira fonte de rendimento é o trabalho ou cujos representantes têm um nível de escolaridade médio ou elevado.

Em paralelo, e de acordo com os dados recolhidos pelo último Inquérito Nacional aos Usos do Tempo, a aquisição de comida confecionada pronta a consumir é o serviço externo de apoio à realização das tarefas domésticas mais frequentemente utilizado em Portugal, recorrendo a ele 20,6% dos agregados. O recurso a este e outros serviços que podem substituir total ou parcialmente a confeção doméstica de refeições, como a contratação de pessoal doméstico, encontra-se em larga medida associado ao perfil socioeconómico dos agregados. Assim, constata-se que o recurso a tais serviços é mais de oito vezes superior nos agregados com um rendimento mensal líquido mais elevado do que naqueles com um rendimento mensal líquido mais baixo. Para além disso, a sua utilização atinge os valores máximos nas famílias representadas por trabalhadores(as) por conta de outrem a desempenhar funções técnicas especializadas ou de chefia (16,9%), e nos casais em que ambos os membros têm atividade profissional remunerada (59,0%). De acordo com a coordenadora do estudo, Ana Isabel Costa:​​​​​

"Há uma preferência estrutural das famílias portuguesas pelo consumo de refeições fora de casa, que as distingue da maioria das suas congéneres europeias e as aproxima, por exemplo, das famílias norte-americanas. Isto revela-se no facto de o peso do consumo alimentar fora de casa na despesa dos agregados ter crescido ou contraído mais rapidamente em Portugal do que em países como a Bélgica ou o Reino Unido, ao longo das últimas décadas e ao ritmo dos ciclos de prosperidade ou recessão económica vividos."

Em suma, o peso do consumo alimentar em casa na despesa das famílias portuguesas está ligado a vários fatores demográficos e socioeconómicos, tais como o grau de urbanização da área de residência (rural/urbana), o grupo etário (superior ou inferior a 65 anos), a composição do agregado (com ou sem menores dependentes), o nível de escolaridade do(a) representante (baixo/elevado), o número de indivíduos ativos (nenhum/um ou mais) e a principal fonte de rendimento do agregado (pensões/trabalho).

A externalização da confeção de refeições, através da compra de alternativas «pronto a comer» ou da contratação de pessoal doméstico, está associada ao perfil socioeconómico dos portugueses, nomeadamente ao exercício de uma atividade profissional e ao tipo de funções laborais desempenhadas, bem como ao rendimento do agregado. Nas famílias com maiores rendimentos, esta opção traduz-se numa redução efetiva do tempo médio diário despendido pelas mulheres em tarefas domésticas, em particular ao fim de semana.

Finalmente, é importante ter em conta que, para além das variáveis socioeconómicas e da disponibilidade de alternativas de externalização do trabalho de cuidado, a especialização na confeção das refeições do agregado e o tempo investido nesta atividade pelas mulheres portuguesas resultam de normas sociais persistentes, que nelas depositam a responsabilidade pela alimentação e o bem-estar da família e, em grande medida, continuam a isentar os homens desse encargo.

Statistical data economy

COME-SE MAIS FORA EM PORTUGAL

Em Portugal, é notória uma aceleração do crescimento do consumo alimentar fora de casa, em proporção do total da Despesa de Consumo Final das Famílias, a partir de 2008 e, principalmente, entre 2013 e 2019. Esta tendência foi revertida somente entre 2010 e 2013, devido à grave recessão económica vivida nesse período, e em 2020, quando se verificou uma quebra abrupta deste tipo de despesa devido à pandemia de covid-19.

É patente também a desaceleração do crescimento da proporção da despesa respeitante ao consumo alimentar em casa entre 1995 e 2010, que se inverte igualmente entre 2010 e 2013, e mais tarde em 2020. O crescimento da proporção da despesa com a aquisição de bens duradouros empregues na confeção e consumo de refeições tem evolução semelhante, embora tenha desacelerado mais cedo e de forma mais acentuada em períodos de dificuldades económicas.

A relação entre despesa alimentar e consumo fora de casa enfraquece em períodos de crise económica. Ao analisar-se a proporção da despesa alimentar total das famílias conclui-se que existem ciclicamente transferências significativas da despesa alimentar fora de casa para gastos com o consumo alimentar doméstico, nomeadamente em períodos de recessão económica, que se revertem em períodos de maior prosperidade. Tais transferências são igualmente observadas nos Estados Unidos da América, por exemplo, outro país onde o consumo alimentar fora de casa representa historicamente uma elevada proporção da despesa alimentar das famílias.

De acordo com os dados recolhidos pelo Instituto Nacional de Estatística através dos Inquéritos à Despesa das Famílias, o consumo alimentar fora de casa representou 8,1% da Despesa Total Anual Média por agregado registada em Portugal em 2015 –2016, contra apenas 5,0% na Bélgica, em 2016; enquanto o consumo alimentar em casa representou 15,0%, contra 14,7% na Bélgica. O consumo alimentar fora de casa representou, por outro lado, 35,1% da Despesa Alimentar Total Anual Média por agregado em Portugal no mesmo período, contra apenas 30,7% da Despesa Alimentar Total Semanal per capita no Reino Unido.

Dados macroeconómicos mais recentes confirmam a preferência nacional pelo consumo alimentar fora de casa relativamente a outros países, mostrando, nomeadamente, que o consumo de serviços de restauração e bebidas das famílias residentes em Portugal superava já os 10,0% do total do consumo privado nos dois anos anteriores à pandemia (2018–2019), enquanto a média europeia nesse período seria pouco superior a 7,0%.

Verifica-se ainda que a proporção da Despesa Total Anual Média dedicada ao consumo alimentar em casa, em Portugal, cresce com a idade, em particular a partir dos 64 anos, independentemente do período de análise considerado. Pelo contrário, a despesa com consumo alimentar fora de casa decresce principalmente em agregados representados por mulheres e de forma mais expressiva na última década, um desenvolvimento semelhante ao observado, por exemplo, nos Estados Unidos da América.

De acordo com os resultados da análise feita aos dados do último Inquérito Alimentar Nacional (2015-2016), podem identificar-se quatro padrões alimentares na população portuguesa, de acordo com o principal local de consumo das refeições: Em casa própria (37%), em casa de familiares ou amigos (8%), no local de trabalho ou ensino (31%) e em restaurantes ou outros locais fora de casa (24%). Destes resultados é possível igualmente concluir-se que mais de metade dos portugueses faz as suas refeições sobretudo fora de casa, nomeadamente no local de trabalho ou ensino ou estabelecimentos de restauração. As refeições que mais frequentemente ocorrem fora de casa são assim o almoço e o lanche, em alinhamento com o impacto dos ciclos diários de trabalho e lazer nos padrões de consumo de refeições.

Statistical data consumption

COMIDO CÁ DENTRO, FEITO LÁ FORA

De acordo com os dados mais recentes do Inquérito Alimentar Nacional, dois terços (66,5%) das refeições consumidas pela população portuguesa residente (3-84 anos) não são confecionadas em casa (confeção não doméstica), sendo que quase metade (45,8%) resulta de atividades de produção, preparação e/ou confeção de alimentos e bebidas em empresas da indústria ou do retalho alimentar (incluindo os que são consumidos in natura), e apenas um quinto de atividades de restauração comercial - 8,6% de cafés, snack-bares, padarias ou confeitarias, e 7,9% de restaurantes, hotéis, empresas de catering, self-service ou pronto a come) - ou coletiva (4,0%). As refeições decorrentes da produção, preparação e/ou confeção de alimentos e bebidas em casa, própria ou de terceiros (confeção doméstica), perfazem o outro terço (33,5%). Destas, 18,6% resultam de atividades efetuadas por familiares ou amigos, e apenas 12,2% são produzidas, preparadas ou confecionadas por aqueles que as consomem.

As refeições de confeção não doméstica predominam ao pequeno-almoço (90,1%) e em lanches (88,6%), nomeadamente as que têm origem na indústria ou no retalho alimentar (74,8% e 66,6%, respetivamente) e em cafés e similares (14,0% e 17,4%). Este tipo de refeições representa ainda mais de metade do consumo ao almoço (54,9%), sendo concretamente 26,0% origem na indústria ou no retalho alimentar, 12,6% na restauração coletiva e 11,2% em restaurantes e outros. Já ao jantar são mais comuns as refeições de confeção caseira (55,6%). Ainda assim, os alimentos e bebidas manufaturados ou com origem no retalho alimentar representam 33.9% dos consumos observados nesta ocasião.

Por outro lado, e de acordo com os dados do Inquérito à Despesa das Famílias, pode observar-se que as refeições de confeção não doméstica predominam sobre as de confeção doméstica qualquer que seja o escalão de rendimento do agregado: 57,1% contra 42,9% no 1º Escalão; 62,3% contra 37,7% no 2º; 66,0% contra 34,0% no 3º, e 69,3% contra 30,7% no 4º. É ainda notório que a diferença entre estas proporções vai crescendo à medida que o escalão aumenta, sendo as diferenças entre todos os escalões significativas para ambos os tipos de confeção, doméstica e não doméstica.

Constata-se ainda que em Portugal, a probabilidade de adultos com menos de 65 anos terem uma dieta que inclui mais consumos fora de casa está associada ao sexo. Assim, os homens têm maior probabilidade de comer fora em restaurantes ou outros estabelecimentos semelhantes que as mulheres nesta faixa etária. Esta probabilidade varia ainda consoante a área de residência. Por exemplo, os adultos que consomem refeições confecionadas em casa de amigos ou familiares são os menos comuns em quase todas as regiões, exceto no Centro e na Madeira. No entanto, os residentes do Centro têm uma maior probabilidade de fazer refeições no trabalho ou na escola. No Algarve, o consumo em restaurantes é mais comum, enquanto nos Açores é menos frequente. Estes dados confirmam em larga medida as tendências observadas através da análise dos dados longitudinais relativos à Despesa Total Anual Média dos agregados residentes em Portugal, recolhidos através do Inquérito à Despesa das Famílias.

Statistical data diet & health

COMO COMEMOS PODE INFLUENCIAR A NOSSA SAÚDE

A última parte do estudo Como comemos o que comemos analisa as associações entre as práticas de confeção e consumo de refeições e a dieta e saúde dos portugueses a partir dos dados recolhidos pelo último Inquérito Alimentar Nacional (2015-2016) e pelo inquérito às práticas alimentares domésticas, levado a cabo entre a população em idade ativa no último trimestre de 2021. Os resultados mostram que a qualidade da dieta está ligada não só ao local que escolhemos para consumir as nossas refeições, especialmente quando o fazemos fora de casa, mas também à origem dos alimentos e bebidas que as compõem, incluindo as preparadas em casa.

Além da ingestão diária de energia e do perfil sociodemográfico, foram identificados outros fatores que influenciam a qualidade da dieta e a saúde, tais como o tipo, horário e ocasião das refeições, o tempo e esforço investidos na sua confeção e outras tarefas domésticas, além das motivações subjacentes. Destaca-se ainda o potencial impacto das horas de trabalho remunerado e de cuidado, bem com o género, composição e rendimento dos agregados familiares.

Em Portugal, o almoço representa a maior fatia da ingestão energética diária (31,8%), seguido do jantar (27,5%) e do lanche (25,0%).  O pequeno-almoço representa o menor valor (15,7%). Estes valores são distintos, por exemplo, nos EUA, onde se verifica um maior peso do pequeno-almoço (18%) e do jantar (35%) e um menor do almoço (25%) e lanche (22%). O consumo de proteínas contribui mais para a energia total ao almoço (21,3%) e jantar (20,3%), sendo menor no lanche (12,0%) e pequeno-almoço (15,4%). O consumo de lípidos é maior ao jantar (30,4%) e almoço (29,4%), e menor ao lanche (24,8%) e pequeno-almoço (24,5%). Já os hidratos de carbono predominam no lanche (58,1%) e no pequeno-almoço (58,0%), sendo mais baixos no almoço (41,6%) e no jantar (41,9%). Por fim, os consumos associados ao pequeno-almoço e lanche apresentam maiores contributos de gorduras saturadas e trans, bem como de açúcares livres, em comparação com o almoço e o jantar.

Os resultados indicam ainda que um elevado consumo de alimentos preparados fora de casa ou por terceiros afasta a dieta dos adultos portugueses (< 65 anos) do padrão mediterrânico, sendo esta associação observada em crianças e adolescentes apenas quando os alimentos provêm da indústria ou do retalho alimentar. De igual modo, o elevado consumo de alimentos preparados fora de casa ou por terceiros encontra-se associado a um maior grau de sedentarismo em adultos e idosos, exceto quando os alimentos provêm da indústria ou do retalho alimentares.

Estudos internacionais mostram que cozinhar em casa está associado a uma dieta de melhor qualidade: no Reino Unido, adultos que cozinham as suas refeições têm uma alimentação mais saudável, e nos EUA, preparar o jantar regularmente está associado a um aumento do consumo diário de hortícolas. Estes efeitos poderão, no entanto, não ter benefícios para o estado ponderal no longo prazo. Na Bélgica, por exemplo, constatou-se que o consumo de refeições em família está diretamente relacionado com o estado ponderal: Os obesos (35,1%) tendem a fazer duas refeições diárias em casa com a família, enquanto os normoponderais (17,2%) consomem esse tipo de refeição apenas nos fins de semana.

Outros estudos mostram ainda que o tempo dedicado ao trabalho remunerado e às tarefas domésticas, especialmente à confeção de refeições, está associado à qualidade da dieta e ao estado ponderal dos adultos em idade ativa. No Reino Unido, mais horas de trabalho pago estão ligadas a um maior consumo de carnes processadas, gorduras saturadas e álcool, principalmente em famílias com crianças. Já nos EUA, mulheres de meia-idade que passam mais tempo na preparação do almoço e do jantar consomem refeições mais substanciais e aumentam o risco de doenças crónicas. Na Bélgica, um inquérito alimentar revelou ainda que o tempo gasto na confeção das refeições está diretamente associado ao aumento do IMC – Índice de Massa Corporal, com os obesos a dedicarem mais tempo à preparação de refeições do que os normoponderais e magros.

"Na população portuguesa adulta (<65 anos), o consumo frequente de refeições em restaurantes está negativamente associado à pré-obesidade e obesidade. No entanto, os resultados do IAN-AF mostram que entre os que consomem refeições preparadas por eles próprios em casa, a proporção de obesos (26,6%) é superior à de normoponderais - pessoas com peso normal - (10,2%) e pré-obesos (15,3%). Já nos que comem refeições confecionadas fora de casa, a percentagem de normoponderais (52,7%) supera a de pré-obesos (44,7%) e obesos (39,2%). Observam-se diferenças significativas somente no caso de refeições confecionadas em estabelecimentos de restauração coletiva, sendo os normoponderais os que mais consomem esse tipo de refeição."

Ana Isabel Costa, coordenadora do estudo

Este estudo procurou aprofundar o conhecimento sobre as associações existentes entre as práticas de confeção e consumo de refeições, a qualidade da dieta e o estado ponderal da população portuguesa em idade ativa, através da realização de um inquérito próprio. A análise dos resultados permite segmentar esta população em quatro grupos com padrões de preparação e consumo de refeições bem distintos: as gregárias emancipadas, as caseiras remediadas, as profissionais diligentes e os universitários desengajados.

Os homens do grupo dos universitários desengajados têm, em média, maior IMC que os restantes, sendo também este o grupo onde menos se realizam atividades ligadas à alimentação em casa, como cozinhar ou fazer compras de supermercado. Este grupo dedica ainda menos tempo à confeção de refeições que os restantes, demonstrando igualmente menor motivação e competências culinárias. Ainda assim, 48,9% dos universitários desengajados almoçam regularmente em casa, gastando em média 26,7 minutos na preparação desta refeição.

As mulheres do grupo das gregárias emancipadas apresentam menor prevalência de pré-obesidade e obesidade (20,3%) em comparação com os demais grupos: profissionais diligentes (35,1%), caseiras remediadas (36,1%) e universitárias desengajadas (34,1%). São também elas as que menos fazem refeições em casa.

Quanto à prática de dietas, 31,9% das caseiras remediadas dizem fazer dieta, proporção superior à das gregárias emancipadas (22,1%), profissionais diligentes (17,6%) e universitárias desengajadas (16,9%). Esse grupo é o que mais realiza refeições em casa e dedica mais tempo à preparação de alimentos, tanto durante a semana quanto no fim de semana, motivado por gosto, satisfação pessoal e autoeficácia.

As profissionais diligentes partilham muitos desses hábitos, mas geralmente não almoçam em casa durante a semana e têm menor envolvimento na preparação de refeições no fim de semana. Para elas, o principal motivo para cozinhar é o sentido do dever e responsabilidade pelo cuidado do lar. Já as gregárias emancipadas são as que menos se dedicam à cozinha e mais consomem refeições fora de casa, especialmente aos fins de semana.

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